Colégio Allan Kardec

Fundado em 1907
No final do século XIX, a pequena comunidade rural de Santa Maria, localizada a 14 km de Sacramento e a quatro quilômetros de Conquista, em Minas Gerais, tornou-se palco de fenômenos inexplicáveis que marcaram o início de um importante capítulo na história do Espiritismo no Brasil.

Introdução

O período compreendido entre 1906 e 1915 representa o apogeu da obra de Eurípedes Barsanulfo, marcado pela fundação e desenvolvimento do Colégio Allan Kardec e pela consolidação de seu trabalho espírita em Sacramento. Este foi um momento de intensa atividade educacional, social e espiritual, em que Eurípedes pôde materializar seus ideais pedagógicos e humanitários.

Após sua conversão ao Espiritismo e a fundação do Grupo Espírita Esperança e Caridade em 1905, Eurípedes direcionou seus esforços para a educação, enxergando nela um poderoso instrumento de transformação social e espiritual. O Colégio Allan Kardec surgiu como expressão concreta desse ideal, representando uma proposta pedagógica inovadora que integrava ciência, filosofia e religião.

Nesta fase de sua vida, Eurípedes Barsanulfo conseguiu harmonizar suas múltiplas atividades: educador, médium curador, farmacêutico homeopata e divulgador da doutrina espírita. Sua influência ultrapassou os limites de Sacramento, atraindo pessoas de diversas localidades interessadas tanto na proposta educacional quanto nas curas mediúnicas.

Contexto Histórico (1906-1915)

O período em que Eurípedes desenvolveu o Colégio Allan Kardec coincide com a chamada República Velha (1889-1930), especificamente durante a vigência da "política do café com leite", que alternava no poder presidentes de São Paulo e Minas Gerais. O Brasil vivenciava um processo de modernização, ainda que lento e concentrado nos grandes centros urbanos.

Contexto Brasileiro da Época:

  • República recente (proclamada em 1889)
  • Economia predominantemente agrária, baseada na exportação de café
  • Grande desigualdade social e concentração de terras
  • Analfabetismo atingindo mais de 80% da população
  • Sistema educacional elitista e insuficiente
Na educação, vivia-se um momento de debates sobre a necessidade de reformas. A influência positivista se fazia sentir nas propostas educacionais, enquanto ganhavam espaço as ideias da Escola Nova, que preconizavam uma educação mais ativa e centrada no aluno. No entanto, a educação formal continuava sendo privilégio de poucos, concentrada nas áreas urbanas e dominada pela Igreja Católica e por escolas privadas destinadas às elites.

O Espiritismo, por sua vez, enfrentava resistências, principalmente da Igreja Católica, mas ganhava adeptos entre as camadas médias urbanas e intelectuais. A prática do Espiritismo ainda era vista com desconfiança e, por vezes, associada ao charlatanismo, sendo inclusive criminalizada pelo Código Penal de 1890.

É neste contexto desafiador que Eurípedes ousou fundar uma instituição educacional declaradamente espírita, representando uma ruptura com os modelos tradicionais e um enfrentamento direto às forças conservadoras da época.

Fundação do Colégio Allan Kardec (1907)

Em 1º de abril de 1907, Eurípedes Barsanulfo inaugurou oficialmente o Colégio Allan Kardec em Sacramento, Minas Gerais. A escolha do nome já demonstrava claramente sua proposta: homenagear o codificador da Doutrina Espírita e assumir publicamente o vínculo com o Espiritismo, algo revolucionário para a época.
Em 1º de abril de 1907, Eurípedes Barsanulfo inaugurou oficialmente o Colégio Allan Kardec em Sacramento, Minas Gerais. A escolha do nome já demonstrava claramente sua proposta: homenagear o codificador da Doutrina Espírita e assumir publicamente o vínculo com o Espiritismo, algo revolucionário para a época.
O evento de inauguração foi documentado pelo periódico "O Reformador", que destacou:
"Finalmente, inauguração na cidade do Sacramento, a 1 de abril, do Collegio Allan Kardec, sob a direcção do nosso confrade Eurípedes Barsanulpho, que, além de ter adoptado aquella franca e desassombrada denominação, incluiu coherentemente, entre as materias do ensino, o Evangelho segundo o Espiritismo."
Fonte: O Reformador, 1907
A inauguração contou com a presença de 108 pessoas, número significativo para uma pequena cidade do interior mineiro, e imediatamente foram matriculados 30 alunos de ambos os sexos. Segundo os relatos, o colégio começou a funcionar na própria residência de Eurípedes, que dedicou parte do imóvel às atividades escolares.

A fundação do Colégio Allan Kardec foi precedida pela experiência do Liceu Sacramentano (1902-1905), também dirigido por Eurípedes. Com o fechamento do Liceu após sua conversão ao Espiritismo, Eurípedes viu a necessidade de criar uma nova instituição que pudesse incorporar sua visão educacional agora transformada pela doutrina espírita.

Ousadia da Iniciativa:


A escolha do nome "Allan Kardec" para o colégio demonstrava uma coragem incomum para a época, considerando o forte predomínio católico e a marginalização do Espiritismo. Como destacou o Reformador: "Louvavel iniciativa, digna de imitação! E a época é precisamente das attitudes intrepidas e desembaraçadas de preconçeitos, porque os tempos são chegados. Felizes os que tiverem a coragem de sua fé!"

Estrutura e Currículo

Instalações Físicas

Inicialmente, o Colégio Allan Kardec funcionou na residência de Eurípedes Barsanulfo, adaptada para receber os alunos. Com o crescimento do número de matrículas, tornou-se necessária a ampliação do espaço, o que ocorreu em 1910 com a inauguração do novo salão de aulas, financiado por amigos e colaboradores.
Em 1920, dois anos após o desencarne de Eurípedes, o inspetor regional Alberto da Costa Mattos visitou o colégio e deixou um detalhado relato sobre suas instalações:
"Visitei ontem o «Colégio Allan Kardec», estabelecimento de ensino primário e secundário para ambos os sexos, fundado nesta cidade pelo ilustre e abnegado educador Eurípedes Barsanulfo, já falecido, e hoje dirigido por seu digno irmão Sr. Wattersides Willon. O prédio escolar, especialmente construído para o fim a que se destina, dispõe, além de magníficas salas onde funcionam as aulas, de dois gabinetes e de um largo alpendre que se comunica com os dois vastos recreios, ajardinados e arborizados.

O Colégio está provido de água própria em abundância e de completas instalações sanitárias. O corpo docente compõe-se de moças e moços inteligentes, preparados no próprio estabelecimento. A escrituração escolar é feita com muita ordem. A matrícula atual é de 125 alunos, sendo 71 do sexo masculino e 54 do feminino. As aulas funcionam em dois turnos: das 7 às 10, para a seção feminina, e das 10 às 3 para a masculina, seguindo-se uma hora de trabalhos manuais para as meninas, a cargo da professora D. Amália Mello.

Assisti às lições dos professores e examinei os alunos nas diversas disciplinas dos cursos, do primário, feito em três anos, do médio e secundário, notando geral adiantamento. São muito bem ensaiados os cânticos escolares e dirigidos com especial cuidado os exercícios de ginástica.

A frequência é sempre grande. Compareceram às aulas 84 alunos, sendo 35 do sexo feminino e 49 do masculino. Durante todos os exercícios escolares observei muito boa ordem e disciplina."
Alberto da Costa Mattos, inspetor regional (Sacramento, 14 de Agosto de 1920) - Termo de Visita, 1920. Fonte: O Reformador, 1920

Organização e Funcionamento

O colégio funcionava em dois turnos: das 7h às 10h para a seção feminina e das 10h às 15h para a seção masculina, seguindo-se uma hora de trabalhos manuais para as meninas, sob a orientação da professora D. Amália Mello. Esta divisão por sexos era comum na época, mas o fato de atender tanto meninos quanto meninas já demonstrava um avanço em relação a muitas instituições.

O corpo docente era formado por ex-alunos preparados no próprio estabelecimento, sob a supervisão direta de Eurípedes. Isso criava um ambiente de multiplicação do conhecimento e permitia a continuidade da proposta pedagógica.

Currículo Escolar

O currículo do Colégio Allan Kardec combinava as disciplinas convencionais exigidas à época com conteúdos diferenciados, refletindo a visão integral de educação proposta por Eurípedes.

Disciplinas Convencionais

  • Português
  • Matemática
  • História
  • Geografia
  • Ciências Naturais
  • Francês
  • Educação Física
  • Desenho e Artes

Disciplinas Diferenciadas

  • Astronomia (com observações práticas)
  • Esperanto
  • Evangelho Segundo o Espiritismo
  • Moral e Civismo
  • Noções de Espiritismo
  • Trabalhos Manuais
Um aspecto particularmente inovador era a inclusão do "Evangelho segundo o Espiritismo" como parte do currículo oficial. Este estudo era realizado às quartas-feiras e aberto também à comunidade, constituindo-se em um momento de formação moral e espiritual.

Em 1911, o periódico "O Reformador" noticiava: "Todos os alunos — têm um Evangelho segundo o Espiritismo, que estudam, e ás quartas-feiras recebem instrucções moraes, isto é, explicações do Evangelho em espirito e verdade."

Inovações Pedagógicas

Eurípedes Barsanulfo implementou no Colégio Allan Kardec uma abordagem pedagógica que, em muitos aspectos, antecipava princípios da Escola Nova, movimento que só ganharia força no Brasil nas décadas seguintes. Sua visão educacional, influenciada tanto pelo Espiritismo quanto por educadores progressistas como Johann Heinrich Pestalozzi, apresentava características revolucionárias para seu tempo.
  • Educação Integral

    Eurípedes concebia a educação como um processo integral, que deveria contemplar as dimensões física, intelectual, moral e espiritual do ser humano. Para ele, o objetivo da educação não era apenas transmitir conhecimentos, mas formar cidadãos conscientes e moralmente desenvolvidos.
  • Educação Ativa

    O aluno era visto como centro do processo educativo, sendo estimulado a participar ativamente da construção do conhecimento. Eurípedes valorizava a experiência direta, a observação da natureza e a experimentação como métodos de aprendizagem.
  • Educação não-Repressora

    Contrariando as práticas da época, no Colégio Allan Kardec não eram aplicados castigos físicos ou punições humilhantes. A disciplina era construída a partir do diálogo, do afeto e do exemplo, em um ambiente de respeito à individualidade do aluno.
  • Coeducação

    Embora os turnos fossem separados, a aceitação de alunos de ambos os sexos representava um avanço para a época, em que muitas escolas eram exclusivamente masculinas ou femininas. Essa prática refletia a visão espírita de igualdade espiritual entre homens e mulheres.

Métodos de Ensino

Os métodos empregados por Eurípedes priorizavam a compreensão sobre a memorização, o raciocínio sobre a repetição mecânica. Entre as práticas pedagógicas inovadoras, destacavam-se:

  • Aulas ao ar livre: Estudos da natureza em contato direto com o ambiente natural, valorizando a observação e a experiência.
  • Uso de recursos didáticos: Instrumentos como o binóculo para observações astronômicas, espécimes naturais para estudo de ciências, e recursos visuais para diversas disciplinas.
  • Ensino contextualizado: Os conteúdos eram relacionados à realidade dos alunos e às questões práticas da vida, tornando o aprendizado significativo.
  • Atividades artísticas e culturais: Teatro, música e outras expressões artísticas eram valorizados como parte da formação integral.
  • Discussões e reflexões: Momentos de debate sobre questões morais e filosóficas, estimulando o pensamento crítico e a autonomia intelectual.

Singularidade Pedagógica:

O projeto pedagógico de Eurípedes Barsanulfo era particularmente singular por integrar harmoniosamente ciência, filosofia e religião – os três aspectos do Espiritismo – em uma proposta educacional. Esta visão contrastava tanto com a educação religiosa tradicional, frequentemente dogmática, quanto com a educação laica que tendia a excluir a dimensão espiritual do processo formativo.

Expansão e Crescimento

1907
1907
Início das atividades com 30 alunos matriculados. As aulas funcionavam na residência de Eurípedes, em espaço adaptado para receber os estudantes.
1910
1910
Inauguração do novo salão de aulas em 17 de agosto, após reforma financiada por amigos e colaboradores de Eurípedes. A expansão do espaço físico permitiu atender a um número maior de alunos.
1911
1911
O Colégio já contava com 132 alunos matriculados, conforme notícia publicada no Reformador: "Numa de suas ultimas edições a Nova Revelação, de São Paulo, insere desenvolvida noticia acerca do Collegio Allan Kardec, que funciona, com uma frequencia de 132 alumnos, na cidade do Sacramento, Estado de Minas, sob a proveitosa direcção de nosso confrade Euripedes Barsanulpho."
O rápido crescimento do número de alunos demonstra a aceitação da proposta educacional de Eurípedes pela comunidade, superando resistências iniciais. A qualidade do ensino oferecido e os resultados obtidos pelos alunos nos exames contribuíram para a consolidação da reputação do colégio.

O Binóculo e as Aulas de Astronomia

Em 1911, Eurípedes adquiriu um binóculo de campo para ser utilizado nas aulas de Astronomia. Este equipamento, considerado avançado para os padrões da época, especialmente em uma pequena cidade do interior, permitia a observação dos astros e enriquecia as aulas com experiências práticas.
O estudo da Astronomia no Colégio Allan Kardec extrapolava o aspecto puramente científico, conectando-se com reflexões filosóficas e espirituais sobre a criação, a pluralidade dos mundos habitados e o lugar do ser humano no universo – temas caros à cosmologia espírita.

As aulas frequentemente aconteciam ao ar livre, durante a noite, para facilitar a observação dos corpos celestes. Os alunos aprendiam sobre os movimentos dos astros, as constelações, os planetas do sistema solar e outros fenômenos astronômicos.

Astronomia e Espiritismo:

A inclusão da Astronomia no currículo refletia a própria concepção espírita, que vê no estudo dos astros uma forma de compreender a grandeza da criação divina e a pluralidade dos mundos habitados, conforme exposto por Allan Kardec em "O Livro dos Espíritos". Para Eurípedes, o conhecimento astronômico ampliava a visão de mundo dos alunos e os ajudava a compreender conceitos espíritas fundamentais.

O Evangelho Segundo o Espiritismo no Currículo

Uma das inovações mais significativas – e potencialmente controversas – do Colégio Allan Kardec foi a inclusão do "Evangelho segundo o Espiritismo" como parte obrigatória do currículo escolar. Eurípedes instituiu que todos os alunos deveriam possuir um exemplar desta obra para estudo.
"Todos os alumnos — têm um Evangelho segundo o Espiritismo, que estudam, e ás quartas-feiras recebem instrucções moraes, isto é, explicações do Evangelho em espirito e verdade."
Fonte: O Reformador, 1911
As aulas de quarta-feira eram dedicadas ao estudo do Evangelho e às "instruções morais", como eram chamadas. Estas sessões eram abertas não apenas aos alunos, mas também à comunidade, tornando-se um importante espaço de divulgação da doutrina espírita em Sacramento.

O estudo do Evangelho era abordado de forma não dogmática, enfatizando os princípios morais e éticos dos ensinamentos de Jesus, em consonância com a interpretação espírita que destacava o caráter racional e universalista da mensagem cristã. Eurípedes buscava transmitir esses ensinamentos de forma acessível e prática, relacionando-os com o cotidiano dos alunos e estimulando a reflexão sobre os valores morais.

Importância na Formação:

Eurípedes considerava que a educação moral era tão importante quanto a intelectual. Para ele, o estudo do Evangelho à luz do Espiritismo fornecia aos alunos uma base segura para a formação do caráter, algo que complementava e dava sentido aos conhecimentos acadêmicos. Em sua visão, o verdadeiro objetivo da educação era formar não apenas pessoas instruídas, mas seres humanos éticos e conscientes de sua responsabilidade perante si mesmos e a sociedade.

O Debate com o Padre Feliciano Iague (1913)

Em 1913, Eurípedes Barsanulfo protagonizou um debate público com o padre Feliciano Iague, representante da Igreja Católica. Este confronto de ideias marcou um momento importante na defesa pública do Espiritismo e do trabalho desenvolvido no Colégio Allan Kardec.

O debate teria surgido a partir de críticas feitas pelo clero local às atividades espíritas em Sacramento, especialmente ao ensino baseado na doutrina espírita oferecido no Colégio Allan Kardec. Conforme aumentava a influência de Eurípedes na comunidade, crescia também a preocupação da Igreja com a difusão do Espiritismo.

Durante o debate, Eurípedes defendeu os princípios espíritas com argumentos racionais e conhecimento aprofundado tanto da doutrina espírita quanto dos textos religiosos. Sua capacidade oratória e sua formação intelectual sólida permitiram-lhe sustentar suas posições com eloquência e serenidade.

Na sequência do debate, Eurípedes publicou o folheto "Acordo e Síntese", onde sistematizava suas ideias e argumentos em defesa do Espiritismo. Este documento tornou-se uma importante referência para os espíritas da região.

Repercussão do Debate:

O debate com o padre Iague repercutiu fortemente na comunidade local e até mesmo em outras regiões. Para muitos, a defesa eloquente e fundamentada do Espiritismo feita por Eurípedes contribuiu para legitimar a doutrina e dissipar preconceitos. Por outro lado, o episódio também acirrou tensões e pode ter contribuído para as perseguições que Eurípedes enfrentaria nos anos seguintes.

A Farmácia Espírita

Paralelamente ao trabalho educacional, Eurípedes Barsanulfo mantinha a Farmácia Espírita Esperança e Caridade, que atingiu seu apogeu durante este período. A farmácia oferecia atendimento e medicamentos gratuitos à população, consolidando o trabalho assistencial que complementava a obra educativa.

O interesse de Eurípedes pela homeopatia havia surgido ainda na adolescência, motivado pela saúde frágil de sua mãe, Dona Meca. Com o tempo, ele desenvolveu conhecimentos aprofundados sobre o assunto e aplicava esses conhecimentos no tratamento dos enfermos que o procuravam.

A Farmácia Espírita funcionava como um verdadeiro centro de atendimento à saúde, onde Eurípedes combinava seus conhecimentos de homeopatia com suas faculdades mediúnicas. A reputação de suas curas espalhou-se pela região, atraindo pessoas de diversas localidades em busca de alívio para seus males.
"Na cidade do Sacramento, e na residencia do nosso confrade Euripedes Barsanulpho (...) á disposição dos enfermos e necessitados tem mantido, e agora com maioria de razão continuará a manter, uma pharmacia homœopathica, na qual — não percamos de assignalar — só no mez de agosto foram aviadas gratuitamente mais de 400 receitas."
Fonte: O Reformador, 1906
O volume de atendimentos era impressionante para a época. Em 1906, conforme noticiado pelo Reformador, a farmácia havia aviado mais de 400 receitas gratuitas em um único mês. Com o passar dos anos, este número só aumentou, demonstrando o alcance do trabalho assistencial de Eurípedes.

A farmácia não se limitava a fornecer medicamentos. O atendimento incluía aconselhamento, passes magnéticos e orientações espirituais, seguindo o princípio espírita de tratar o ser humano em sua integralidade.

Integração com o Colégio:

Existia uma relação estreita entre a Farmácia Espírita e o Colégio Allan Kardec. Para Eurípedes, saúde e educação eram partes de um mesmo processo de evolução do ser humano. O colégio cuidava da formação intelectual, moral e espiritual, enquanto a farmácia atendia às necessidades do corpo físico. Além disso, a farmácia servia como espaço para aulas práticas e transmissão de conhecimentos sobre saúde e tratamentos naturais.

Contexto Educacional Brasileiro

Para compreender plenamente o caráter inovador do Colégio Allan Kardec, é fundamental situá-lo no contexto educacional brasileiro do início do século XX. Este período foi marcado por diversas transformações, ainda que lentas e concentradas nos grandes centros urbanos.

Panorama da Educação no Brasil (1906-1915)

Desafios Estruturais

  • Elevado índice de analfabetismo (mais de 80% da população)
  • Concentração das escolas nas áreas urbanas
  • Infraestrutura escolar precária
  • Formação deficiente de professores
  • Escassez de material didático

Características do Sistema

  • Educação elitista e excludente
  • Predominância de escolas privadas e confessionais
  • Metodologias tradicionais baseadas na memorização
  • Uso frequente de castigos físicos e punições
  • Separação rígida entre educação masculina e feminina
Neste período, o sistema educacional brasileiro ainda se estruturava, com tentativas de reformas que enfrentavam resistências e limitações orçamentárias. A chamada "educação popular" era mais uma aspiração do que uma realidade, com a maior parte da população tendo acesso restrito ou nulo à educação formal.

Correntes Pedagógicas Influentes

Três grandes correntes pedagógicas disputavam espaço no cenário educacional brasileiro da época:
  • Pedagogia Tradicional

    Predominante nas escolas confessionais, especialmente católicas, baseava-se na autoridade do professor, na memorização e na disciplina rígida. O aluno era visto como receptor passivo do conhecimento.
  • Pedagogia Positivista

    Influenciada pelo pensamento positivista que marcou os primeiros anos da República, enfatizava o ensino científico, a racionalidade e a laicidade, mas ainda mantinha métodos tradicionais de ensino.
  • Pedagogia Renovada

    Inspirada em educadores como Pestalozzi, Froebel e, posteriormente, Dewey, começava a ganhar espaço com suas propostas de educação ativa, centrada no aluno e baseada na experiência direta.

Correntes Pedagógicas Influentes

Neste contexto, o Colégio Allan Kardec representava uma proposta singular, que conjugava elementos de vanguarda pedagógica com uma fundamentação espiritual própria. Enquanto a maioria das escolas oferecia uma educação ou estritamente religiosa (baseada nos dogmas católicos) ou exclusivamente laica, o colégio de Eurípedes propunha um modelo integrativo.
Contribuições Educacionais de Eurípedes:
  • Antecipação de princípios da Escola Nova, que só ganhariam força no Brasil após a década de 1920
  • Integração entre educação científica e formação moral/espiritual, sem dogmatismo
  • Inclusão educacional em uma época de forte elitismo
  • Valorização da autonomia do aluno e de sua participação ativa no processo de aprendizagem
  • Humanização das relações educacionais, com abolição de castigos e punições

Impacto na Comunidade

O Colégio Allan Kardec e o trabalho de Eurípedes Barsanulfo produziram profundo impacto na comunidade de Sacramento e região, com influência que se estendeu muito além do período em que ele esteve à frente das instituições.

Transformação Social

A primeira contribuição significativa foi a democratização do acesso à educação de qualidade em Sacramento. O colégio atendia a alunos de diferentes origens sociais, oferecendo ensino gratuito ou a preços acessíveis, em uma época em que a educação era privilégio de poucos.

A formação oferecida preparava os estudantes não apenas para exames e carreiras profissionais, mas para se tornarem cidadãos conscientes e atuantes na sociedade. Muitos ex-alunos tornaram-se, eles próprios, educadores e agentes de transformação social.
"Eis ahi uma obra de grande alcance para o futuro da nossa doutrina: preparar as novas gerações, não sômente nos exercicios intellectuaes que a instrucção faculta, como no conhecimento da mais pura moral que lhes servirá de guia e orientação em todas as situações da vida."
Fonte: O Reformador, 1911

Difusão do Espiritismo

O trabalho educacional e assistencial de Eurípedes contribuiu decisivamente para a difusão e aceitação do Espiritismo em Sacramento e no Triângulo Mineiro. O Colégio Allan Kardec tornou-se um centro irradiador da doutrina espírita, formando gerações familiarizadas com seus princípios.

As aulas abertas de estudo do Evangelho às quartas-feiras criavam um espaço de aprendizado espiritual para a comunidade, atraindo mesmo pessoas que não tinham filhos matriculados no colégio.

Assistência Social e de Saúde

A integração entre o Colégio Allan Kardec, o Grupo Espírita Esperança e Caridade e a Farmácia Espírita criou uma rede de assistência que atendia às múltiplas necessidades da população.

O trabalho assistencial realizado por Eurípedes na Farmácia Espírita beneficiou milhares de pessoas, especialmente aquelas sem acesso a tratamentos médicos convencionais. Este atendimento gratuito e humanizado estabeleceu um modelo de caridade ativa que seria continuado por seus seguidores.

Reconhecimento e Reputação

A qualidade do ensino oferecido no Colégio Allan Kardec e os resultados obtidos pelos alunos granjearam reconhecimento mesmo entre aqueles que não compartilhavam das convicções espíritas de Eurípedes.

O relatório do inspetor Alberto da Costa Mattos, de 1920, ilustra esse reconhecimento ao elogiar diversos aspectos do colégio, desde suas instalações físicas até o adiantamento dos alunos e a ordem e disciplina observadas.

Legado Duradouro:

O Colégio Allan Kardec tornou-se um símbolo e inspiração para iniciativas educacionais espíritas em todo o Brasil. A abordagem pedagógica de Eurípedes, que integrava conhecimento científico, formação moral e desenvolvimento espiritual, estabeleceu as bases do que viria a ser conhecido como "Pedagogia Espírita", influenciando gerações de educadores espíritas.

Referências Bibliográficas

Fontes Primárias
  • Artigo sobre a Inauguração do Colégio Allan Kardec (1907)
  • O Reformador, Ano 1907, Julho, Edição 00013
  • Notícia sobre o Colégio Allan Kardec (1911)
  • O Reformador, Ano 1911, Abril, Edição 00008, Página 137
  • Termo de Visita do Inspetor Regional Alberto da Costa Mattos (1920)
  • O Reformador, Ano 1920, Setembro, Edição 00018
  • Conferência em Sacramento (1918)
  • O Reformador, Ano 1918, Junho, Edição 00011
  • Instalação do Grupo Espírita Esperança e Caridade (1906)
  • O Reformador, Ano 1906, Novembro, Edição 00021

Fontes Secundárias
  • NOVELINO, Corina. Eurípedes: O Homem e a Missão. Araras: IDE, 1979.
  • BIGHETO, Alessandro Cesar. Eurípedes Barsanulfo, um educador espírita na Primeira República. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2006.
  • INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas. Tese de Doutorado. FEUSP, 2001.
  • SILVA, Jaqueline Peixoto Vieira da. Espiritismo e Educação: Eurípedes Barsanulfo e o Colégio Allan Kardec/Sacramento-MG (1880-1918). Dissertação de Mestrado. UFU, 2017.
  • FERREIRA, Inácio. Subsídios para a História de Eurípedes Barsanulfo. Uberaba: s.n., 1962.

Curadoria e pesquisa por Saulo Amui

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